O trem do passado já passou... E só fica esperando à toa na estação, quem quer! |
Minha terapeuta que me perdoe, mas deixei para revelar aqui um desejo jamais confessado: meu sonho é participar de um reisado.
Isso mesmo. Aqueles reisados tradicionais do início de janeiro, onde os grupos saem durante a madrugada cantarolando cantigas do cancioneiro popular e nos tirando o sono em troca de alguma bobagem qualquer que tivermos em casa.
A chama desse desejo é reavivada, é claro, sempre que o calendário aponta a aproximação do evento. E mesmo com a minha cidade promovendo um encontro de grupos de reisado, ainda assim não me conformei. Eu não quero simplesmente olhar! Quero sair às ruas, virar lata, fazer bagunça na porta alheia e curtir os ares românticos da boêmia.
Infelizmente, o hábito odioso da procrastinação distanciou-me da concretização desse sonho. Pois agora a ideia de me arriscar pelas madrugadas não me parece nem um pouco atraente. Ainda mais porque a experiência de avaliação dos “grupos de reisado” que fiz ano passado mudou um pouco minha visão poética sobre o assunto.
Em outros tempos, os andarilhos foram atendidos pelos meus pais e, anos depois, pelo meu marido. Eu só ficava ansiosa e quietinha na cama, ouvindo canções bonitas e a hábil execução dos instrumentos musicais: violão, flautas, alguns pandeiros e atenta às vozes cujos timbres denunciavam faixas etárias variadas. Tudo isso alimentava ainda mais a minha imaginação e desejo. Um dia estaria ali, do outro lado do portão!
Mas ano passado foi diferente. O roteiro de espera até que foi o mesmo. Separei as coisinhas de sempre: uma cidra que sobrou no Natal, umas fileirinhas de bolacha água e sal, um refrigereco de uva... E tão logo escutei os primeiros passos na calçada, comecei a girar a chave da porta. No entanto, mal abri e já fiquei arrependida. Era um bando de rapazes magrelos, sem camisa, andando meio trôpegos, com umas latas velhas na mão e fazendo um barulho infernal (aquilo não era música, não podia ser). O ritmo em que entoavam a letra das canções e aqueles, como poderia dizer, “instrumentos rústicos”, me faziam duvidar de seus estados de sobriedade. Era um desencontro total!
Quando finalmente terminaram a sessão de tortura, o “líder do bando” me encarou de forma desafiadora e disse: “Tia (como assim!!!!), o siguinti é essi: a sinhora podi dá qualqué coisa mermo, viu! Qualqué cinco conto, tá bom!”.
Quanto a mim, era a pura imagem da perplexidade e da frustração, segurando uma cidra e com uma vontade absurda de chorar e chamar pela minha mãe. O sentimento de idealização e contentamento deu lugar a uma sensação semelhante ao que devem sentir os reféns. Diga-se de passagem, um refém sem o mínimo sintoma de Síndrome de Estocolmo. Eu queria mesmo era fugir dali! Mas não dava mais pra voltar atrás. Sorri amarelo, voltei para dentro orando para todos os santos para que eles não tivessem a ideia de me acompanhar e também para que eu tivesse os benditos “cinco conto” na bolsa. Felizmente, as orações deram certo, e despachei o “reisado” da minha porta com uma respiração de alívio e a promessa de não abrir a porta para nenhum outro grupo.
A experiência rendeu duas certezas. A primeira delas: cuidado com aquilo que deseja, é melhor adotar um plano B e escolher outro sonho inútil para corroer minha existência; a segunda é que o saudosismo exagerado pode deturpar nossa visão sobre a realidade e atrapalhar muito a vida presente.
Muitas vezes me pego rememorando o passado e repassando momentos especiais: a infância, com toda a família reunida (hoje cada um seguiu seu caminho), o início empolgante e marcante do namoro que rendeu o casamento (que como toda união, tem suas dificuldades), aquela professora amorosa e gentil (substituída agora pela figura de autoridade de chefes bem exigentes), o frescor da juventude com o corpinho no auge (e que a lei da gravidade transformou radicalmente)... Enfim, nada mais natural do que recordar. Todo mundo faz isso!...
O problema é que prender-se a esses flashbacks, principalmente se você estiver passando por uma fase difícil, pode tornar o dia-a-dia insuportável, fazendo com que as lembranças boas constituam-se no único refúgio (agradável, porém irreal). O que a gente não para pra pensar é que até mesmo aquele período cultuado no altar de nossas recordações, também tinha suas nuances negativas. E só o passar do tempo fez dele “a melhor época de nossas vidas”. Parece que simplesmente apagamos da memória a parte ruim e elegemos o passado como um ideal a ser apenas enaltecido, já que nada mais podemos fazer dele. Passou... Só o que temos é o AGORA!
Ouvimos todos os dias que é preciso seguir em frente, deixar o que passou para trás. Mas talvez a dificuldade que temos de lidar com nós mesmos e com os problemas do cotidiano, nos instigue a procurar válvulas de escape da realidade. Como o futuro ainda não aconteceu e é apenas consequência do “hoje” (que em muitos momentos pode não nos parecer tão feliz), essa válvula acaba sendo as “lembranças selecionadas” do ontem. É como diz a canção: “A gente era feliz e não sabia”!
Eu, finalmente, reconheci o aspecto sombrio desse traço saudosista (aparentemente tão inocente) e decidi fazer diferente. Vou reservar as lembranças aos limites da memória e deixar que elas possuam fluir naturalmente, de vez em quando. Mas sem alimentá-las em devaneios sem utilidade. E daí admitir que tenho apenas o dia de HOJE como um PRESENTE, uma dádiva para ADMINISTRAR e CONSTRUIR minha vida a cada minuto e fazer aquilo que eu quero fazer, da melhor forma possível. Sem procrastinar (por causa disso, perdi meu reisado) e sem esbarrar na melancolia e na beleza plastificada do passado. Pelo menos é assim que vou tentar agir daqui para frente!
Mil Beijos!
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