Meu auto-retrato. À venda na feira livre mais perto de você! |
Oi, gente, tudo bom com vocês?
Domingo especial, dia de prova de redação do ENEM. Milhões de jovens, nesse instante, martelam suas cabecinhas e quanto a mim, estou aqui, sobre a minha cama ortopédica, refletindo sobre a morte da bezerra. Para diminuir o tédio, abri o guarda-roupa e fui dar uma arrumada nas seiscentos e oitenta e quatro peças de roupa entupidas nos estreitos espaços do sofrido móvel. Acho até que algumas já se fundiram e geraram outras peças novas, derivadas da síntese de estampas e tecidos. É a natureza achando um jeito de se adaptar às leis da física.
Pecinha vai, pecinha vem, encontrei uma saia feita pela minha mãe há pouco tempo e que eu nunca usei. Minha mãe é uma exímia costureira. Mas os tempos modernos aposentaram seu talento. Hoje ninguém mais manda fazer roupa, coisa que era super comum há alguns anos atrás. Quando eu era criança vivia desfilando looks novos na escola, numa época em que para se definir um visual só bastava que a roupa fosse bonita. Hoje, a roupa é medida pela marca. A pessoa se sente o máximo vestindo uma camiseta de algodão com strech (o vulgo “cotton”) que marca os pneuzinhos que existem até no períspirito e que na frente traz estampado um outdoor enorme com uma palavra que, para mim, parece ser o nome de um selo ou de uma empresa de entrega de correspondência. E detalhe: tem que trazer do avesso uma etiqueta reluzente do tamanho de uma folha de caderno, para que o feliz proprietário possa mostrar aos amigos que aquela camiseta é a original que custa 100 reais, e não uma réplica idêntica (e igualmente feia) vendida no camelódromo por 15 reais a baciada.
Mas gosto é gosto e é melhor eu calar a boca senão corro o risco de ser espancada por adolescentes enfurecidas. E voltando a história da saia da mamãe, ela me despertou profundos sentimentos de culpa. Sim, porque se tem uma coisa que mãe sabe fazer como ninguém é fazer um cristão se sentir culpado. Você pode estar super alto astral, feliz e saltitante até que cai na besteira de dar uma passadinha na casa dela pra matar a saudade. Cinco minutos depois ela aparece com um prato cheio de comida, desses que você só sabe que existe mesmo um prato quando coloca a mão embaixo para segurar. Então, você ingenuamente e despretensiosamente responde: “Não, mãe, quero não, eu já jantei!”. *PAUSA – SUSPENSE - FUNDO MUSICAL DRAMÁTICO*. Proferidas essas palavras apocalípticas, ela te devolverá um olhar de dó, resultado de anos de treinamento em manipulação de seres humanos, e responderá quase num gemido: “Tudo bem, só achei que você estava com fome!”. Aí, mermão, não tem mais jeito. Perdeu, playboy! Se não quer ser torturado pela culpa pelo resto dos seus dias, pegue imediatamente esse prato (na verdade, nunca deveria ter recusado) e coma tudo com uma expressão de felicidade no rosto e sem perder a paciência durante as 50 vezes em que ela vai perguntar se está gostoso.
Mas desculpe o meu devaneio, vocês já devem estar acostumados... Era só para vocês terem uma noção do que senti quando vi a tal saia. Eu explico. Como minha mãe ainda não superou o fato de ter sido preterida à indústria têxtil multinacional, ela continua costurando quase todos os dias, numa máquina bem simples, e vive presenteando filhos, irmãos, netos e vizinhos com suas produções. Como a atividade não gera lucro, a matéria prima é feita de tecidos baratinhos, retalhos em sua maioria, que ela compra no quilo. Minhas sobrinhas, ainda envolvidas pelo véu mágico da ignorância infantil (tempos felizes), adoram os vestidinhos que parecem empanadas de circo. Quanto a nós, filhos já adultos, é um pouco mais complicado... E a minha mãe quando encontra uma estampa de que ela goste, compra toneladas desse retalho e faz milhares e milhares de peças que só se diferenciam pela posição dos pedados da estampa. Da última vez que isso aconteceu ela fez 3 saias pra minha tia, 2 vestidos para minha prima, 4 shorts para meus irmãos, 3 camisetas para o meu cunhado, 2 para meu marido e, é claro, a tal saia pra mim. Eu brinco, dizendo que é a “maldição da estampa” que se espalha pelo mundo. Lógico que não digo isso na frente dela, mas já virou piada interna dentro da família. Sorte minha que mamãe não acessa a Internet.
Mas quando vi os pedacinhos que formavam a minha saia, fiquei pensando em como ela se assemelha a mim (com uma diferença: eu sou bonita!). Sim, porque eu me vejo como uma colcha de retalhos. Acabo de sair de uma experiência profissional inteiramente nova, exercendo uma função que nunca na vida pensei em fazer. E que, modéstia à parte, cumpri muito bem, mesmo tendo enfrentando extrema insegurança no início, pois acreditava que não daria conta. E rememorando minha trajetória profissional, percebi que ela foi toda marcada por essa peculiaridade. Já fiz tanta coisa que às vezes parece difícil acreditar que só tenho 30 anos. Claro que foi algo bom, que prova a minha capacidade de aprendizado, adaptação e coragem para enfrentar desafios. Mas por outro lado, denuncia a minha falta de foco! Muitas vezes me sinto como se eu fosse tudo isso e, ao mesmo tempo, não fosse nada. E talvez seja essa a razão da minha angústia e insegurança.
O fato de eu dividir isso com vocês é porque o ser humano, em sua extrema solidão, costuma acreditar que é o único no mundo a passar por tal situação. E talvez não seja! Vai ver que você aí, do outro lado, se sente do mesmo jeito. Ou, quem sabe, já se sentiu. E de um jeito ou de outro superou. Ou simplesmente se adaptou. Sabe lá!
Da minha parte, decidi aproveitar essa entresafra pra refletir e me descobrir. Claro que essa experiência seria bem mais charmosa e agradável se eu fizesse igual a Julia Roberts e viajasse pelo mundo inteiro. Mas paciência, vou ter que me conformar em fazer isso percorrendo o caminho entre a sala e o quarto mesmo. No final das contas, a resposta está sempre dentro da gente.
Bom, vou começar a descosturar esses retalhos pra ver o que eu descubro. Mas não da saia, é claro. Quanto a ela, prefiro aproveitar pra ganhar alguns pontos com a mamãe e vesti-la para visitá-la mais tarde. E claro, vou ficar sem comer a partir de agora, senão eu até evito o peso da culpa, mas em compensação, ganho uns quilos a mais na balança.
Beijos, bom domingo!
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