segunda-feira, 7 de abril de 2014

CRÔNICA DE UMA DECADÊNCIA COMPARTILHADA


A minha cachorrinha, Polly, foi adotada ainda filhote, quando apareceu na porta lá de casa, suja, mulambenta e com a maior concentração de pulgas e carrapatos por m2 de seu minúsculo corpinho.

Como eu estava muito depressiva pelo recém-desencarne do meu pai, a energia e fofura dela ajudaram na recuperação. Mas quando ficou maiorzinha, dava um trabalho danado! Ela tinha uma fertilidade absurda e nas raríssimas vezes em que fugiu de casa, voltou com 380 cachorrinhos na barriga. E como jovem mãe, solteira e inconsequente, sempre abandonava a cria e sobrava pra vovó aqui, a tarefa de alimentá-los, cuidá-los, até o dia de encaminhá-los para adoção.

Claro que isso me esgotava totalmente! Por isso, sempre tomei muito cuidado pra ela não fugir. Mas a bichinha era esperta e veloz! Escondia-se e aproveitava um lapso de distração pra correr feito uma louca pelo portão semi-aberto.

Eu, desesperada, imaginando que iria criar filho dos outros, corria atrás no meio da rua e muitas vezes conseguia alcançá-la. Em outras, ela me dava uma surra e fugia enlouquecidamente. Mas era pau a pau! Éramos, ambas, jovens, belas e dispostas!

Mas esses dias, depois de anos de confinamento, ela fugiu! Foi moleza, já que esqueci de trancar o portão e o vento o escancarou! Como num dejavú, pensei em persegui-la velozmente, tal qual fiz no passado. Mas nos dois primeiros passos, minhas costas estalaram. Resolvi trotar. E também não consegui. Em resumo: a persegui ANDANDO e adulando! "Volta, Pollyzinha!", "Vem cá, fofinha!".

O mais trágico é que ELA também NÃO CONSEGUIA CORRER! E ficamos as duas, uma fugindo e a outra perseguindo, no mesmo ritmo arrastado, tentando ver quem venceria a outra pelo cansaço primeiro.

Pra finalizar, caminhamos uns 50 metros nessa peleja. Quando chegava bem pertinho, ela andava mais um pouco a minha frente. Até que olhou em volta, percebeu que os gatinhos saltitantes, os lixos revirantes e as plantinhas verdejantes já não tinham mais a mesma graça. Parou, me encarou e aceitou seu destino. Deixou-me pegá-la. Aliás: OBRIGOU-ME a pegá-la, pois já estava exausta! E tive de voltar os 50 metros carregando aquela anciã canina, com o peso acumulado do alto dos seus 12 anos de ração e salsichas.

Eu poderia reclamar, esbravejar, maldizer minha sina, já que as costas latejavam pela tarefa (hercúlea para as minhas limitadas condições físicas). Mas só consegui rir e dividir com ela a nossa decadência, exclamando, entre risadas: "Mulher, como é que tu faz um negócio desses com a gente!", "Nós duas não temos mais idade pra isso, não!". Num gesto de empatia, ela abanava o rabo, fazendo cócegas na minha barriga.

Pode parecer meio deprê, mas de certa forma é reconfortante saber que minha decrepitude é compartilhada. Sei lá, torna o peso do fardo mais leve! Foi bom perceber que a velha companheira, que outrora me ajudou a superar a orfandade paterna, estava ao meu lado em outro momento crítico. Uma bengala peluda e pulguenta, amparando uma balzaquiana confrontada com os efeitos do passar de alguns anos.

Assim, chego a conclusão que a vida pode ser bela, até naquelas fases um tanto quanto embaraçosas...  E que mais vale derramar lágrimas a dois, do que desperdiçar gargalhadas sozinha!

Beijos da Lulu!