Desequilibrando-se na vaidade precoce... |
Dizem as más línguas que toda mulher que se preze tem de ser vaidosa. Deve
estar sempre bem vestida, cheirosa, de unhas feitas e cabelo arrumado. De
quebra, ter um sorriso cativante, um andar maneiro e sensual, modos delicados e
tom de voz contido. Tudo no “devido lugar”, como manda a mãe-natureza.
Não sei quanto às minhas companheiras, mas eu demorei a encontrar esta
mulher. Talvez a tal mãe-natureza tenha me considerado uma filha indesejada ou
estivesse ocupada demais para me repassar suas valiosas lições.
Ficou a cargo do mundo ensinar-me os “bons exemplos”. E tal qual a Fábula
do Corvo e do Pavão, um dia recebi a notícia de que meu pé não era nenhum
exemplar digno de idolatria podólotra.
Isso ocorreu quando eu tinha uns nove anos. Fase da vida em que a
preocupação básica é ser criança. Eu não olhava o mundo acima ou abaixo de mim,
a não ser quando era necessário dirigir-me a um adulto ou catar pedrinhas pelo
chão. Não me via torturada pelo sentimento pecador do orgulho nem angustiada
por fragilidades da autoestima. Nem sabia que isso existia! Eu vislumbrava o
mundo à minha altura, olhando de frente, numa sede de exploração infantil
guiada unicamente pelo desejo de diversão e conhecimento. Então, com tanta
coisa a fazer, a última coisa objeto da minha atenção seria o meu pé.
Acontece que eu tinha uma irmã mais velha. E uma mãe que jamais me
poupou das verdades. Essa irmã, sim, era um exemplar magnífico de feminilidade.
Cintura fina, corpo violão, voz aguda e falar comedido. Delicada como
porcelana. Vaidosa, ostentava sobre a penteadeira cremes de todos os tipos.
Disciplinada, aplicava-os diariamente. E eu não compreendia a razão de tanta
perda de tempo.
Certo dia a vi massageando os pezinhos. E descobri, vejam vocês, que
existia um creme específico para eles. Estava lá, impresso no rótulo:
“Hidratante para os pés”. Não para as coxas, para os joelhos ou para as
canelas, mas para os pés.
Na hora, pensei: o que aconteceria se ela se atrapalhasse e aplicasse a
substância em outra parte do corpo? Eram tantos frascos, tantos potes que não
seria impossível confundir. Temi por sua saúde, a imaginei perdendo os braços,
coitada, enquanto o médico comentava com a enfermeira: “É, não havia o que
fazer, ela aplicou nos braços o creme que era para os pés!”.
Aterrorizada, questionei mamãe se não faria mal essa provável confusão.
Ela disse que não, que esse tipo de hidratante era similar aos outros, mas
continha algumas substâncias mais eficientes para o trato dos pezinhos que
requeriam uma atenção especial.
Uma vez aliviada, me permiti rir diante do que me parecia uma completa
inutilidade. Gastar dinheiro comprando mais um creme só para passar no pé?
Muito melhor seria gastá-lo com pirulitos e gibis!
Ante meu comentário debochado, recebi uma rigorosa reprimenda. Mamãe
explicou que o pé de uma mulher era uma questão importantíssima. Que tinha de
ser macio, delicado, com as unhas bem cuidadas e ter um formato pequenino e
harmonioso.
Diante de tantas qualificações, lembrei que também tinha um par e baixei
o olhar em sua direção. A cada qualidade descrita, eu riscava mais um item na
minha lista de conferência mental. Afinal, os meus eram grosseiros, cheio de
cicatrizes, as unhas estavam compridas demais e o dedão estava com o “chaboque”
arrancado. E para cravar minha desgraça, eram grandes e os dedos, muito separados.
Calçada com um chinelinho, concluí que aquele pé era tão desengonçado quanto um
pé de pato.
Mas o discurso da mamãe não parou por aí, até porque ela aproveitou o
ensejo para repreender outras falhas da minha personalidade antifeminina. Falou
que uma mulher tinha de ser delicada, não poderia viver correndo pela rua. Não
poderia ficar falando alto, andar com os cabelos desgrenhados... Ah! E
principalmente: ser prendada, cuidadosa com suas coisinhas, gostar de arrumar a
casa e deixar tudo limpo e organizado.
Enfim, a cada segundo fui me dando conta de quão desleixada eu era. E as
coisas começaram a fazer sentido, pois lembrei que na escola os coleguinhas me
chamavam de “Luciana, cabelo que não penteia!” (os fios tinham vida própria,
acho que descendia da Medusa). Os meninos não me tratavam com gentilezas nem
galanteios, mas azucrinavam a minha paciência (embora deva admitir que soubesse
me defender muito bem!). E por onde passava só se ouvia a minha voz exagerada e
estridente.
De início isso me preocupou bastante. Esqueci que era criança e fui
tentar me adequar àquilo que o mundo esperava de mim. Quando as meninas
chamavam para brincar, recusava, por estar ocupada demais ensaiando os passos
que me levariam a ser uma garota delicada. E quando pensava em desistir, olhava
para o pé de pato.
Passei quase uma semana envolvida nesse empreendimento tão sério.
Colocava os pezinhos de molho para refinar a pele grosseira que os revestia.
Arrumei uns pedaços de babosa e apliquei diariamente nos fios para domá-los. Afanei
umas poções de cremes para aplicar nas faces antes de dormir. E disciplinei-me
a arrumar o quarto como toda jovem prendada faz.
A mudança logo operou resultados e os comentários de aprovação se
multiplicaram. Até na escola fui elogiada e os garotos passaram a me olhar
diferente. Tudo parecia perfeito, mas logo fiquei impaciente e enfadada com
todo aquele trabalho diário só pra ser mulher! Não demorei a chutar o balde e
mandar tudo pras cucuias.
Voltei ao gênio indomável de sempre. E permaneci assim durante toda a
adolescência e boa parte da vida adulta. Perto dos 30 anos, nunca havia
permitido que um alicate se aproximasse dos meus dedinhos, embora fosse filha e
irmã de manicure. Já em tempos de escova progressiva, ostentava uma cabeleira
volumosa e rebelde, de fios virgens de químicas ou tinturas. A maquiagem foi
incorporada tardiamente e por razões meramente profissionais, mas a falta de
habilidade não permitia exceder ao básico. A sobrancelha era cheia de falhas e
uma tentativa mal sucedida de corrigi-la por conta própria quase me deixou sem
ela. Também tinha medo de tesoura e fazer a unha, para mim, consistia
basicamente em roer os dedos até transformá-los em cotocos disformes.
Na verdade tinha outras prioridades e estava ocupada demais em correr
atrás dos meus sonhos materiais. Precisei lutar pela sobrevivência desde cedo.
Queria um emprego fixo, uma casa para morar. Então com tantas prioridades mais
urgentes, todo esse arsenal de cuidados parecia um dispêndio fútil e
desnecessário. Em bom português: Frescura! Algo que não podia e tampouco estava
disposta a pagar.
Talvez tardiamente para alguns (para mim, foi a hora certa), finalmente
chegou o momento de fazer o debut na
feminilidade negligenciada. Depois de adquirir algum conforto material e
estabilidade profissional, surgiu o desejo de me cuidar. Sem imposições, sem
pressões. Deu vontade e pronto! E começou com a depilação de buço.
Nunca quis me livrar do bigodinho porque achava que ele me conferia
força e personalidade. Mentira! Era relaxo mesmo. E embora tenha doído
horrores, senti-me tão mais leve sem aquele acessório peludo que deixei várias
outras sessões pagas. Meu lema era: bigode nunca mais!
Claro que não ficou só nisso. Aproveitando as maravilhas da tecnologia
capilar, entrei no salão como o Capitão Caverna e saí Cleópatra. Os cabelos
fartos e cacheados ficaram lisos. Muita gente a princípio estranhou, mas até
que gostei, sobretudo pela praticidade de levantar pela manhã sem precisar
passar por um ritual para tentar baixar aquela moita gigante! Eu que julgava o
salão de cabeleireiro uma futilidade que tornava a mulher uma eterna
dependente, percebi que na verdade já era refém daquele cabelo natural
horroroso.
Tal qual Norma Jeane, descolori os fios e virei Marylin Monroe. Sucesso absoluto! Além de ser ótimo para esconder os primeiros fios brancos. Sobrancelha, manicure, maquiagem, tratamentos, peelings, massagens e tudo mais. Virou rotina! E finalmente desabrochei a beleza lapidada. E o que é melhor: junto com a exuberância da maturidade, já que “coincidiu” com o ingresso na gloriosa fase balzaquiana.
Por considerar que tudo ocorreu no momento ideal, jamais me torturei com
o pensamento de que perdi tempo, que joguei a melhor fase da juventude fora e
blá blá blá! Como disse, antes tinha outras prioridades e só se fosse louca
para desperdiçar o dinheiro com que me mantinha em gastos com esmalte e
chapinha. Nem morta! Se hoje posso usufruir com tranquilidade esses momentos de
“frescurite” é porque tenho a segurança de que agora sim, está tudo no seu
“devido lugar". E graças a Deus não permiti que a inquietação de ser bela
e atraente estragasse minha infância com demonstrações precoces de vaidade.
Infelizmente, vejo que nem todas têm a mesma sorte (sim, me considero
sortuda!). E que a mídia e os padrões de educação modernos tem motivado
verdadeiras aberrações e mutilações infantis.
Essa semana estava no salão quando vi um casal entrar com três garotinhas.
A mãe de uma delas passou apenas para agendar um procedimento. Mas minha atenção
se voltou para as meninas.
Duas eram verdadeiros mini-protóticos de “periguetes”. Perdoem-me a
expressão grosseira, mas pela forma como essa “espécie” feminina vem sendo
exaltada e glamourizada pela mídia, até duvido que isso seja considerado uma
ofensa pela maioria. Vestiam o top do biquíni e um shortinho curto. Nada demais
se essas meninas realmente parecessem crianças. Mas o conjunto da obra refletia
uma imagem como se uma jovem dessas bem vaidosas e exibicionistas de repente
trocasse de corpo com uma criança de 8 anos e não conseguisse se desvencilhar
de seus hábitos, submetendo aquele corpo infantil a toda sorte de procedimentos
“embelezadores” (para mim, era horrível). Cabelos com penteados elaborados e
tingidos por tons e técnicas da moda: luzes e mechas! Maquiagem elaborada (não
entendi o porquê, já que iam tomar banho de piscina). Abdomens esticados e
contraídos (não duvido que fruto de uma preocupação precoce com dietas
restritivas). Muitas pulseiras, brincos grandes, penduricalhos nos cabelos... Um
jeito de falar bem peculiar - parecia que cada sílaba era impulsionada pelo
mascar de um chiclete. E os assuntos: esmaltes, retoques de raiz (???!!!!!),
marquinha de biquíni.
No meio daqueles dois seres estranhos, percebi uma garotinha da mesma
faixa etária. Tímida, espremida pela “exuberância” das outras. Vestida com um
maiô rosa estampado com motivos infantis; uma bermuda meio gasta; o cabelo
enrolado de qualquer jeito e preso no alto da cabeça com uma presilha plástica;
um par de óculos de grau; um pouco rechonchuda... Não deu um pio e quase nem se
mexeu. Ninguém no salão lhe deu bola. Estavam todos ocupados em admirar e
conversar com as Barbies ambulantes.
Direcionei minha atenção para ela. Invisível, ensaiou alguns passos.
Olhou um espelho, ajeitou os óculos que estavam tortos. Mexeu nas prateleiras,
pegou um frasco e – maravilha das maravilhas! – leu o rótulo do produto.
Meu desejo era levantar, abraçá-la com carinho e dizer que continuasse
assim. Mas levando em conta as circunstâncias e o ambiente, limitei-me a fazer
uma prece silenciosa, pedindo a Deus que fortalecesse aquela criança e que ela
jamais sucumbisse aos apelos dessa sociedade trivial. Que ela fizesse o que
gostasse, que aproveitasse com fervor a infância, que estudasse bastante,
tirasse boas notas, ignorasse a implicância dos garotos... E que ela, por hora,
se contentasse em ser apenas... LINDA! Que é exatamente o que toda CRIANÇA é!
Naturalmente linda, sem artifícios nem maquiagem. A beleza incomparável da
infância, que nem todos os salões do mundo juntos são capazes de reproduzir.
Ela foi embora, mas minha prece permanece repetida como um mantra.
Talvez nem seja ela quem precise destas orações. Muito provavelmente quem
necessite urgentemente de preces e de proteção sejam as outras duas meninas e
suas réplicas espalhadas pelo mundo. São elas que estão tendo não apenas a
aparência, mas principalmente, a infância vilipendiada e destruída por valores
e questões absolutamente inapropriadas para sua idade. Isso ninguém jamais
poderá lhes restituir. Está perdido para sempre!