quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A menina do pé grande!

Desequilibrando-se na vaidade precoce...

Dizem as más línguas que toda mulher que se preze tem de ser vaidosa. Deve estar sempre bem vestida, cheirosa, de unhas feitas e cabelo arrumado. De quebra, ter um sorriso cativante, um andar maneiro e sensual, modos delicados e tom de voz contido. Tudo no “devido lugar”, como manda a mãe-natureza.

Não sei quanto às minhas companheiras, mas eu demorei a encontrar esta mulher. Talvez a tal mãe-natureza tenha me considerado uma filha indesejada ou estivesse ocupada demais para me repassar suas valiosas lições.

Ficou a cargo do mundo ensinar-me os “bons exemplos”. E tal qual a Fábula do Corvo e do Pavão, um dia recebi a notícia de que meu pé não era nenhum exemplar digno de idolatria podólotra.

Isso ocorreu quando eu tinha uns nove anos. Fase da vida em que a preocupação básica é ser criança. Eu não olhava o mundo acima ou abaixo de mim, a não ser quando era necessário dirigir-me a um adulto ou catar pedrinhas pelo chão. Não me via torturada pelo sentimento pecador do orgulho nem angustiada por fragilidades da autoestima. Nem sabia que isso existia! Eu vislumbrava o mundo à minha altura, olhando de frente, numa sede de exploração infantil guiada unicamente pelo desejo de diversão e conhecimento. Então, com tanta coisa a fazer, a última coisa objeto da minha atenção seria o meu pé.

Acontece que eu tinha uma irmã mais velha. E uma mãe que jamais me poupou das verdades. Essa irmã, sim, era um exemplar magnífico de feminilidade. Cintura fina, corpo violão, voz aguda e falar comedido. Delicada como porcelana. Vaidosa, ostentava sobre a penteadeira cremes de todos os tipos. Disciplinada, aplicava-os diariamente. E eu não compreendia a razão de tanta perda de tempo.

Certo dia a vi massageando os pezinhos. E descobri, vejam vocês, que existia um creme específico para eles. Estava lá, impresso no rótulo: “Hidratante para os pés”. Não para as coxas, para os joelhos ou para as canelas, mas para os pés.

Na hora, pensei: o que aconteceria se ela se atrapalhasse e aplicasse a substância em outra parte do corpo? Eram tantos frascos, tantos potes que não seria impossível confundir. Temi por sua saúde, a imaginei perdendo os braços, coitada, enquanto o médico comentava com a enfermeira: “É, não havia o que fazer, ela aplicou nos braços o creme que era para os pés!”.

Aterrorizada, questionei mamãe se não faria mal essa provável confusão. Ela disse que não, que esse tipo de hidratante era similar aos outros, mas continha algumas substâncias mais eficientes para o trato dos pezinhos que requeriam uma atenção especial.

Uma vez aliviada, me permiti rir diante do que me parecia uma completa inutilidade. Gastar dinheiro comprando mais um creme só para passar no pé? Muito melhor seria gastá-lo com pirulitos e gibis!

Ante meu comentário debochado, recebi uma rigorosa reprimenda. Mamãe explicou que o pé de uma mulher era uma questão importantíssima. Que tinha de ser macio, delicado, com as unhas bem cuidadas e ter um formato pequenino e harmonioso.

Diante de tantas qualificações, lembrei que também tinha um par e baixei o olhar em sua direção. A cada qualidade descrita, eu riscava mais um item na minha lista de conferência mental. Afinal, os meus eram grosseiros, cheio de cicatrizes, as unhas estavam compridas demais e o dedão estava com o “chaboque” arrancado. E para cravar minha desgraça, eram grandes e os dedos, muito separados. Calçada com um chinelinho, concluí que aquele pé era tão desengonçado quanto um pé de pato.

Mas o discurso da mamãe não parou por aí, até porque ela aproveitou o ensejo para repreender outras falhas da minha personalidade antifeminina. Falou que uma mulher tinha de ser delicada, não poderia viver correndo pela rua. Não poderia ficar falando alto, andar com os cabelos desgrenhados... Ah! E principalmente: ser prendada, cuidadosa com suas coisinhas, gostar de arrumar a casa e deixar tudo limpo e organizado.

Enfim, a cada segundo fui me dando conta de quão desleixada eu era. E as coisas começaram a fazer sentido, pois lembrei que na escola os coleguinhas me chamavam de “Luciana, cabelo que não penteia!” (os fios tinham vida própria, acho que descendia da Medusa). Os meninos não me tratavam com gentilezas nem galanteios, mas azucrinavam a minha paciência (embora deva admitir que soubesse me defender muito bem!). E por onde passava só se ouvia a minha voz exagerada e estridente.

De início isso me preocupou bastante. Esqueci que era criança e fui tentar me adequar àquilo que o mundo esperava de mim. Quando as meninas chamavam para brincar, recusava, por estar ocupada demais ensaiando os passos que me levariam a ser uma garota delicada. E quando pensava em desistir, olhava para o pé de pato.

Passei quase uma semana envolvida nesse empreendimento tão sério. Colocava os pezinhos de molho para refinar a pele grosseira que os revestia. Arrumei uns pedaços de babosa e apliquei diariamente nos fios para domá-los. Afanei umas poções de cremes para aplicar nas faces antes de dormir. E disciplinei-me a arrumar o quarto como toda jovem prendada faz.

A mudança logo operou resultados e os comentários de aprovação se multiplicaram. Até na escola fui elogiada e os garotos passaram a me olhar diferente. Tudo parecia perfeito, mas logo fiquei impaciente e enfadada com todo aquele trabalho diário só pra ser mulher! Não demorei a chutar o balde e mandar tudo pras cucuias.

Voltei ao gênio indomável de sempre. E permaneci assim durante toda a adolescência e boa parte da vida adulta. Perto dos 30 anos, nunca havia permitido que um alicate se aproximasse dos meus dedinhos, embora fosse filha e irmã de manicure. Já em tempos de escova progressiva, ostentava uma cabeleira volumosa e rebelde, de fios virgens de químicas ou tinturas. A maquiagem foi incorporada tardiamente e por razões meramente profissionais, mas a falta de habilidade não permitia exceder ao básico. A sobrancelha era cheia de falhas e uma tentativa mal sucedida de corrigi-la por conta própria quase me deixou sem ela. Também tinha medo de tesoura e fazer a unha, para mim, consistia basicamente em roer os dedos até transformá-los em cotocos disformes.

Na verdade tinha outras prioridades e estava ocupada demais em correr atrás dos meus sonhos materiais. Precisei lutar pela sobrevivência desde cedo. Queria um emprego fixo, uma casa para morar. Então com tantas prioridades mais urgentes, todo esse arsenal de cuidados parecia um dispêndio fútil e desnecessário. Em bom português: Frescura! Algo que não podia e tampouco estava disposta a pagar.

Talvez tardiamente para alguns (para mim, foi a hora certa), finalmente chegou o momento de fazer o debut na feminilidade negligenciada. Depois de adquirir algum conforto material e estabilidade profissional, surgiu o desejo de me cuidar. Sem imposições, sem pressões. Deu vontade e pronto! E começou com a depilação de buço.

Nunca quis me livrar do bigodinho porque achava que ele me conferia força e personalidade. Mentira! Era relaxo mesmo. E embora tenha doído horrores, senti-me tão mais leve sem aquele acessório peludo que deixei várias outras sessões pagas. Meu lema era: bigode nunca mais!

Claro que não ficou só nisso. Aproveitando as maravilhas da tecnologia capilar, entrei no salão como o Capitão Caverna e saí Cleópatra. Os cabelos fartos e cacheados ficaram lisos. Muita gente a princípio estranhou, mas até que gostei, sobretudo pela praticidade de levantar pela manhã sem precisar passar por um ritual para tentar baixar aquela moita gigante! Eu que julgava o salão de cabeleireiro uma futilidade que tornava a mulher uma eterna dependente, percebi que na verdade já era refém daquele cabelo natural horroroso.

Tal qual Norma Jeane, descolori os fios e virei Marylin Monroe. Sucesso absoluto! Além de ser ótimo para esconder os primeiros fios brancos. Sobrancelha, manicure, maquiagem, tratamentos, peelings, massagens e tudo mais. Virou rotina! E finalmente desabrochei a beleza lapidada. E o que é melhor: junto com a exuberância da maturidade, já que “coincidiu” com o ingresso na gloriosa fase balzaquiana.

Por considerar que tudo ocorreu no momento ideal, jamais me torturei com o pensamento de que perdi tempo, que joguei a melhor fase da juventude fora e blá blá blá! Como disse, antes tinha outras prioridades e só se fosse louca para desperdiçar o dinheiro com que me mantinha em gastos com esmalte e chapinha. Nem morta! Se hoje posso usufruir com tranquilidade esses momentos de “frescurite” é porque tenho a segurança de que agora sim, está tudo no seu “devido lugar". E graças a Deus não permiti que a inquietação de ser bela e atraente estragasse minha infância com demonstrações precoces de vaidade.

Infelizmente, vejo que nem todas têm a mesma sorte (sim, me considero sortuda!). E que a mídia e os padrões de educação modernos tem motivado verdadeiras aberrações e mutilações infantis.

Essa semana estava no salão quando vi um casal entrar com três garotinhas. A mãe de uma delas passou apenas para agendar um procedimento. Mas minha atenção se voltou para as meninas.

Duas eram verdadeiros mini-protóticos de “periguetes”. Perdoem-me a expressão grosseira, mas pela forma como essa “espécie” feminina vem sendo exaltada e glamourizada pela mídia, até duvido que isso seja considerado uma ofensa pela maioria. Vestiam o top do biquíni e um shortinho curto. Nada demais se essas meninas realmente parecessem crianças. Mas o conjunto da obra refletia uma imagem como se uma jovem dessas bem vaidosas e exibicionistas de repente trocasse de corpo com uma criança de 8 anos e não conseguisse se desvencilhar de seus hábitos, submetendo aquele corpo infantil a toda sorte de procedimentos “embelezadores” (para mim, era horrível). Cabelos com penteados elaborados e tingidos por tons e técnicas da moda: luzes e mechas! Maquiagem elaborada (não entendi o porquê, já que iam tomar banho de piscina). Abdomens esticados e contraídos (não duvido que fruto de uma preocupação precoce com dietas restritivas). Muitas pulseiras, brincos grandes, penduricalhos nos cabelos... Um jeito de falar bem peculiar - parecia que cada sílaba era impulsionada pelo mascar de um chiclete. E os assuntos: esmaltes, retoques de raiz (???!!!!!), marquinha de biquíni.

No meio daqueles dois seres estranhos, percebi uma garotinha da mesma faixa etária. Tímida, espremida pela “exuberância” das outras. Vestida com um maiô rosa estampado com motivos infantis; uma bermuda meio gasta; o cabelo enrolado de qualquer jeito e preso no alto da cabeça com uma presilha plástica; um par de óculos de grau; um pouco rechonchuda... Não deu um pio e quase nem se mexeu. Ninguém no salão lhe deu bola. Estavam todos ocupados em admirar e conversar com as Barbies ambulantes.

Direcionei minha atenção para ela. Invisível, ensaiou alguns passos. Olhou um espelho, ajeitou os óculos que estavam tortos. Mexeu nas prateleiras, pegou um frasco e – maravilha das maravilhas! – leu o rótulo do produto.

Meu desejo era levantar, abraçá-la com carinho e dizer que continuasse assim. Mas levando em conta as circunstâncias e o ambiente, limitei-me a fazer uma prece silenciosa, pedindo a Deus que fortalecesse aquela criança e que ela jamais sucumbisse aos apelos dessa sociedade trivial. Que ela fizesse o que gostasse, que aproveitasse com fervor a infância, que estudasse bastante, tirasse boas notas, ignorasse a implicância dos garotos... E que ela, por hora, se contentasse em ser apenas... LINDA! Que é exatamente o que toda CRIANÇA é! Naturalmente linda, sem artifícios nem maquiagem. A beleza incomparável da infância, que nem todos os salões do mundo juntos são capazes de reproduzir.


Ela foi embora, mas minha prece permanece repetida como um mantra. Talvez nem seja ela quem precise destas orações. Muito provavelmente quem necessite urgentemente de preces e de proteção sejam as outras duas meninas e suas réplicas espalhadas pelo mundo. São elas que estão tendo não apenas a aparência, mas principalmente, a infância vilipendiada e destruída por valores e questões absolutamente inapropriadas para sua idade. Isso ninguém jamais poderá lhes restituir. Está perdido para sempre!


Minha mãe é uma bruxa!


Toda mulher sabe (embora não admita) e todo homem (casado) já aprendeu a duras penas: existem coisas que só podem ser ditas por nós, exemplares femininos da espécie.

Ditos, estes, num monólogo exagerado, assistido por uma plateia (marido) tensa, preocupada em disfarçar qualquer expressão facial que denote censura, choque, discordância ou mesmo a anuência. Pois até essa última, aparentemente tão propícia às interpretações positivas, pode ser uma perigosa armadilha diante de uma fêmea com o olhar treinado e o ouvido bem atento. Sabe aquela conversa de sexto sentido? Bobagem! É apenas o saldo de uma leve dose de paranoia acrescida aos cinco convencionais.

Dentre essas “declarações perigosas”, podemos citar alguns clássicos: “Nossa, como estou gorda!”, ou ainda, “A nossa vizinha está linda, com um corpão maravilhoso!”. São exemplos de frases inocentes com alto potencial de destruição. Nesses casos, homens inexperientes, acreditem: se você ainda não domina a refinada arte da dissimulação, é melhor manter-se da forma mais neutra possível. A não ser que desejem uma temporada de noites mal dormidas no sofá.

Mas nenhuma destas expressões delicadas é capaz de sobrepujar, em nível de risco, ao desabafo irado de uma mulher que chuta o balde do quarto mandamento e reclama com todas as letras: “Minha mãe é uma bruxa!”.

Nestes instantes temperados por forte emoção e seguidos de profunda culpa, nós, filhas, arrancamos das entranhas do nosso subconsciente toda a rivalidade, competição, inveja e ciúme que, sozinhos, já são difíceis de assumir que carregamos em nossa bagagem psíquica. Imagine, então, quando o alvo de tudo isso é a nossa santa mãezinha. Haja autoflagelação para expiar tanta maldade! Afinal, trata-se um comportamento socialmente, religiosamente e moralmente repreensível. Praticamente uma senha vip para o inferno!

No entanto, o motivo que me levou a escrever não é nenhuma síndrome pseudoterapeuta, repleta de teorias presunçosas e psicologia de boteco. Mas a necessidade de compartilhar a experiência não apenas da minha história, mas também de outra pessoa muito importante para mim. A causa de tantos dilemas existenciais e dos gastos com analista (quiçá, da razão da existência dessa profissão): minha mãe, atualmente uma mulher na fase crítica dos 60 anos em que me inquieta não apenas a sua autonomia e integridade física. Egoisticamente falando, temo também pelo MEU estado psicológico em virtude das transformações comportamentais típicas da senilidade, quando se multiplicam as manias, os resmungos e as inconstâncias emocionais. Se agora já é difícil honrar com paciência e tolerância o mandamento filial, imagine, então, quando ela estiver no auge da impertinência.

Na verdade tive problemas com minha mãe desde que NÃO me entendo por gente. Explico: apesar de conscientemente não recordar patavina dos meus primeiros dias de vida, ela lembra muito bem, o que me conferiu uma lembrança por associação. Segundo a matriarca, fui a única da prole a recusar o seio acolhedor logo na primeira tentativa de amamentação. E nem sua zelosa insistência foi o bastante para convencer a beneficiar-me das maravilhas do leite materno. Dez dias depois, a guerreira desistiu da empreitada. Quanto a mim, ganhei uma imunidade baixa e doenças que quase me arrancaram do seio familiar antes de completar o primeiro ano de vida.

Talvez essa rejeição preconizasse as dificuldades e conflitos que enfrentaríamos logo na infância. Não sei. O fato é que desde cedo nós duas não nos demos bem. E tamanha era a nossa semelhança de temperamento, que a dimensão gigantesca da similaridade nos cegava e só permitia enxergar defeitos mútuos.

Claro que levando em consideração fatores como maturidade, experiência e “hierarquia sociofamiliar”, eu saía perdendo. Mamãe era mais velha, mais experiente e era A MÃE. Ponto final! Cabia-me apenas obedecer e concordar pacificamente com suas ordens e opiniões, sem questionamentos nem respostas atrevidas.

Ah! Mas quem disse que a vida é simples assim? Nunca fui capaz de ficar calada. Sempre analisei, questionei e relativizei todas as suas declarações. E minha mãe, saída de um modelo familiar de perfeita submissão filial, jamais foi capaz de aceitar que eu representava o papel de filha de uma maneira bem diferente do que ela representou. E sem saber COMO lidar com a situação, recorreu ao caminho da repressão e da censura. O que, por sua vez, atiçou as tensões, alimentando em ambas um estado frequente de combate e autodefesa.

Quando ela dizia algo, o tom expressava provocação (ou pelo menos era assim que soava aos meus ouvidos), e sabe-se lá por qual razão, me cabia a “missão” de responder de forma antagônica. E vice-versa. Praticamente um jogo de gato e rato, com as duas atentas ao que cada uma iria falar ou fazer. Uma tensão constante.

Alguns desses embates eram tão ridículos que às vezes ficava difícil determinar quem era a mãe e quem era a filha. O nível intelectual da discussão beirava o marco zero. Uma delas ocorreu quando eu tinha uns oito anos. O motivo? A letra da música “Tristeza Danada”, de Agnaldo Timóteo.

Um dos vizinhos adorava ouvir a canção e com a repetição, aprendi a letra. Ou não, já que na visão crítica da mamãe uma vogal fazia toda a diferença. E enquanto cantarolava feliz e despreocupada a última parte da música – “Vem PARA ficar comigo” – ela, impiedosa, interrompeu-me para dizer que não se dizia PARA, quando o correto seria a forma sincopada PRA.

Bobagem, diria você. Acontece que o tal tom provocativo que aprendi a ouvir soou como um aviso PRA voltar ao ringue. E o romantismo e doçura da letra foram para as cucuias diante da discussão, que o que tinha de banal, tinha de acirrada. Eu, da forma mais inconsequente e BURRA possível, continuei insistindo em cantar a letra do meu jeito. Em alto e bom som. E ela não se conteve, passando a criticar e repetir agressiva e debochadamente a forma ridícula como eu pronunciava a conjunção da discórdia. Não demorou muito até que o título da música se tornasse realidade. Depois de levar uns tabefes, terminei meu dia numa “Tristeza Danada”...

Acontecimentos desse tipo foram, aos poucos, construindo em torno dela uma imagem de BRUXA. E o antagonismo que se instaurou entre nós me fez crer que éramos duas personalidades completamente opostas, sem qualquer afinidade. Nossos gostos, preferencias, objetivos, visões e ideologias diferiam por completo, onde, a mim, cabia o lado BOM da história. Enquanto eu era a mocinha, ela era a bandida. Só depois de muitos anos fui capaz de admitir que todas as nossas diferenças residiam no fato de que éramos muito mais parecidas do que imaginávamos. Duas bicudas a se bicar com força.

Contudo, chegou o dia em que me dispus a enxergar mamãe com outros olhos. No instante em que o próprio amadurecimento, forjado pelas provas de fogo da vida, tornou meu ouvido menos crítico ante suas costumeiras queixas e lamentações.

O sentimento de empatia despertou naturalmente quando me identifiquei com situações vividas por ela. Quando fui capaz de compreender que muito daquilo que julgava como um comportamento inexplicavelmente agressivo e amargo, era fruto de experiências traumáticas de uma dificuldade bem superior às provações que eu já havia passado e que costumava supervalorizar de tal maneira que praticamente justificavam todas as MINHAS lamentações. Enquanto EU era a mártir incompreendida, mamãe era a ALGOZ cruel.

Foi assim por muito tempo. Até que um dia, bem recentemente, deitada numa rede enquanto ela me observava sentada numa cadeira velha, ouvi uma história tão dramática que no primeiro momento me pareceu surreal. Era difícil aceitar que minha mãe havia protagonizado um roteiro de novela mexicana à la “Maria do Bairro”.

Talvez essa recusa nascesse da culpa em admitir a injustiça pela minha frequente intolerância. Mas esse foi um momento muito importante, pois a partir de então passei a enxergá-la não como o modelo de heroína perfeita que minhas expectativas irreais (e cruéis) impuseram. Longe disso. Assim como eu, você e qualquer outro, mamãe é um ser humano. Uma mulher, com uma história sofrida, cheia de altos e baixos. E tal conclusão, que dita assim, de forma tão simples, faz parecer algo escandalosamente óbvio, foi, na prática, bem mais difícil de constatar. Porque enchemos o mundo e as pessoas que nos rodeiam de expectativas absurdas. E como diria Madre Teresa de Calcutá, quem julga as pessoas não tem tempo de amá-las.

Não vou dividir com vocês os pormenores de tal sofrimento. Mas faço questão de compartilhar a mudança que isso projetou em nossa relação. Afinal, foi uma experiência de mão dupla: eu me dispus a ouvi-la, mas ela se dispôs primeiro a me contar. Escolheu-me para abrir seu coração. E certamente o fez porque foi capaz de enxergar, com o típico olhar materno de raio-x, que eu já havia me tornado uma MULHER, madura o bastante para compreender que a vida não é uma fórmula mágica e que as pessoas não vem ao mundo nem entram em nossas vidas com rótulos que definem com perfeição aquilo que são e o que deveriam ser.

Ela, afinal de contas, é a mãe que precisamente mereço, necessito e tenho! Ponto final! Sou um pedaço dela, e ela está em cada pedaço de mim.


Talvez seja cedo para dizer que nossa relação tenha alcançado o Nirvana, mas já deu bons passos adiante. Bom PRA nós duas - síndromes do espelho uma da outra - que finalmente passamos a nos gostar e, por consequência, a admirar o reflexo que no fundo debochava da ironia que residia em toda aquela rivalidade.

Beijocas!