Toda mulher sabe (embora não admita) e todo homem (casado) já aprendeu a
duras penas: existem coisas que só podem ser ditas por nós, exemplares
femininos da espécie.
Ditos, estes, num monólogo exagerado, assistido por uma plateia (marido)
tensa, preocupada em disfarçar qualquer expressão facial que denote censura,
choque, discordância ou mesmo a anuência. Pois até essa última, aparentemente
tão propícia às interpretações positivas, pode ser uma perigosa armadilha
diante de uma fêmea com o olhar treinado e o ouvido bem atento. Sabe aquela
conversa de sexto sentido? Bobagem! É apenas o saldo de uma leve dose de paranoia
acrescida aos cinco convencionais.
Dentre essas “declarações perigosas”, podemos citar alguns clássicos:
“Nossa, como estou gorda!”, ou ainda, “A nossa vizinha está linda, com um
corpão maravilhoso!”. São exemplos de frases inocentes com alto potencial de
destruição. Nesses casos, homens inexperientes, acreditem: se você ainda não
domina a refinada arte da dissimulação, é melhor manter-se da forma mais neutra
possível. A não ser que desejem uma temporada de noites mal dormidas no sofá.
Mas nenhuma destas expressões delicadas é capaz de sobrepujar, em nível
de risco, ao desabafo irado de uma mulher que chuta o balde do quarto
mandamento e reclama com todas as letras: “Minha mãe é uma bruxa!”.
Nestes instantes temperados por forte emoção e seguidos de profunda
culpa, nós, filhas, arrancamos das entranhas do nosso subconsciente toda a rivalidade,
competição, inveja e ciúme que, sozinhos, já são difíceis de assumir que
carregamos em nossa bagagem psíquica. Imagine, então, quando o alvo de tudo
isso é a nossa santa mãezinha. Haja autoflagelação para expiar tanta maldade!
Afinal, trata-se um comportamento socialmente, religiosamente e moralmente
repreensível. Praticamente uma senha vip para o inferno!
No entanto, o motivo que me levou a escrever não é nenhuma síndrome
pseudoterapeuta, repleta de teorias presunçosas e psicologia de boteco. Mas a
necessidade de compartilhar a experiência não apenas da minha história, mas
também de outra pessoa muito importante para mim. A causa de tantos dilemas
existenciais e dos gastos com analista (quiçá, da razão da existência dessa
profissão): minha mãe, atualmente uma mulher na fase crítica dos 60 anos em que
me inquieta não apenas a sua autonomia e integridade física. Egoisticamente
falando, temo também pelo MEU estado psicológico em virtude das transformações
comportamentais típicas da senilidade, quando se multiplicam as manias, os
resmungos e as inconstâncias emocionais. Se agora já é difícil honrar com
paciência e tolerância o mandamento filial, imagine, então, quando ela estiver
no auge da impertinência.
Na verdade tive problemas com minha mãe desde que NÃO me entendo por
gente. Explico: apesar de conscientemente não recordar patavina dos meus
primeiros dias de vida, ela lembra muito bem, o que me conferiu uma lembrança
por associação. Segundo a matriarca, fui a única da prole a recusar o seio
acolhedor logo na primeira tentativa de amamentação. E nem sua zelosa
insistência foi o bastante para convencer a beneficiar-me das maravilhas do
leite materno. Dez dias depois, a guerreira desistiu da empreitada. Quanto a
mim, ganhei uma imunidade baixa e doenças que quase me arrancaram do seio
familiar antes de completar o primeiro ano de vida.
Talvez essa rejeição preconizasse as dificuldades e conflitos que
enfrentaríamos logo na infância. Não sei. O fato é que desde cedo nós duas não
nos demos bem. E tamanha era a nossa semelhança de temperamento, que a dimensão
gigantesca da similaridade nos cegava e só permitia enxergar defeitos mútuos.
Claro que levando em consideração fatores como maturidade, experiência e
“hierarquia sociofamiliar”, eu saía perdendo. Mamãe era mais velha, mais
experiente e era A MÃE. Ponto final! Cabia-me apenas obedecer e concordar
pacificamente com suas ordens e opiniões, sem questionamentos nem respostas
atrevidas.
Ah! Mas quem disse que a vida é simples assim? Nunca fui capaz de ficar
calada. Sempre analisei, questionei e relativizei todas as suas declarações. E
minha mãe, saída de um modelo familiar de perfeita submissão filial, jamais foi
capaz de aceitar que eu representava o papel de filha de uma maneira bem
diferente do que ela representou. E sem saber COMO lidar com a situação,
recorreu ao caminho da repressão e da censura. O que, por sua vez, atiçou as
tensões, alimentando em ambas um estado frequente de combate e autodefesa.
Quando ela dizia algo, o tom expressava provocação (ou pelo menos era
assim que soava aos meus ouvidos), e sabe-se lá por qual razão, me cabia a
“missão” de responder de forma antagônica. E vice-versa. Praticamente um jogo
de gato e rato, com as duas atentas ao que cada uma iria falar ou fazer. Uma
tensão constante.
Alguns desses embates eram tão ridículos que às vezes ficava difícil
determinar quem era a mãe e quem era a filha. O nível intelectual da discussão
beirava o marco zero. Uma delas ocorreu quando eu tinha uns oito anos. O
motivo? A letra da música “Tristeza Danada”, de Agnaldo Timóteo.
Um dos vizinhos adorava ouvir a canção e com a repetição, aprendi a
letra. Ou não, já que na visão crítica da mamãe uma vogal fazia toda a diferença.
E enquanto cantarolava feliz e despreocupada a última parte da música – “Vem
PARA ficar comigo” – ela, impiedosa, interrompeu-me para dizer que não se dizia
PARA, quando o correto seria a forma sincopada PRA.
Bobagem, diria você. Acontece que o tal tom provocativo que aprendi a
ouvir soou como um aviso PRA voltar ao ringue. E o romantismo e doçura da letra
foram para as cucuias diante da discussão, que o que tinha de banal, tinha de
acirrada. Eu, da forma mais inconsequente e BURRA possível, continuei
insistindo em cantar a letra do meu jeito. Em alto e bom som. E ela não se
conteve, passando a criticar e repetir agressiva e debochadamente a forma
ridícula como eu pronunciava a conjunção da discórdia. Não demorou muito até
que o título da música se tornasse realidade. Depois de levar uns tabefes,
terminei meu dia numa “Tristeza Danada”...
Acontecimentos desse tipo foram, aos poucos, construindo em torno dela
uma imagem de BRUXA. E o antagonismo que se instaurou entre nós me fez crer que
éramos duas personalidades completamente opostas, sem qualquer afinidade.
Nossos gostos, preferencias, objetivos, visões e ideologias diferiam por
completo, onde, a mim, cabia o lado BOM da história. Enquanto eu era a mocinha,
ela era a bandida. Só depois de muitos anos fui capaz de admitir que todas as
nossas diferenças residiam no fato de que éramos muito mais parecidas do que
imaginávamos. Duas bicudas a se bicar com força.
Contudo, chegou o dia em que me dispus a enxergar mamãe com outros
olhos. No instante em que o próprio amadurecimento, forjado pelas provas de
fogo da vida, tornou meu ouvido menos crítico ante suas costumeiras queixas e
lamentações.
O sentimento de empatia despertou naturalmente quando me identifiquei
com situações vividas por ela. Quando fui capaz de compreender que muito
daquilo que julgava como um comportamento inexplicavelmente agressivo e amargo,
era fruto de experiências traumáticas de uma dificuldade bem superior às
provações que eu já havia passado e que costumava supervalorizar de tal maneira
que praticamente justificavam todas as MINHAS lamentações. Enquanto EU era a
mártir incompreendida, mamãe era a ALGOZ cruel.
Foi assim por muito tempo. Até que um dia, bem recentemente, deitada
numa rede enquanto ela me observava sentada numa cadeira velha, ouvi uma
história tão dramática que no primeiro momento me pareceu surreal. Era difícil
aceitar que minha mãe havia protagonizado um roteiro de novela mexicana à la “Maria do Bairro”.
Talvez essa recusa nascesse da culpa em admitir a injustiça pela minha
frequente intolerância. Mas esse foi um momento muito importante, pois a partir
de então passei a enxergá-la não como o modelo de heroína perfeita que minhas
expectativas irreais (e cruéis) impuseram. Longe disso. Assim como eu, você e
qualquer outro, mamãe é um ser humano. Uma mulher, com uma história sofrida,
cheia de altos e baixos. E tal conclusão, que dita assim, de forma tão simples,
faz parecer algo escandalosamente óbvio, foi, na prática, bem mais difícil de
constatar. Porque enchemos o mundo e as pessoas que nos rodeiam de expectativas
absurdas. E como diria Madre Teresa de Calcutá, quem julga as pessoas não tem
tempo de amá-las.
Não vou dividir com vocês os pormenores de tal sofrimento. Mas faço
questão de compartilhar a mudança que isso projetou em nossa relação. Afinal,
foi uma experiência de mão dupla: eu me dispus a ouvi-la, mas ela se dispôs
primeiro a me contar. Escolheu-me para abrir seu coração. E certamente o fez porque
foi capaz de enxergar, com o típico olhar materno de raio-x, que eu já havia me
tornado uma MULHER, madura o bastante para compreender que a vida não é uma
fórmula mágica e que as pessoas não vem ao mundo nem entram em nossas vidas com
rótulos que definem com perfeição aquilo que são e o que deveriam ser.
Ela, afinal de contas, é a mãe que precisamente mereço, necessito e
tenho! Ponto final! Sou um pedaço dela, e ela está em cada pedaço de mim.
Talvez seja cedo para dizer que nossa relação tenha alcançado o Nirvana,
mas já deu bons passos adiante. Bom PRA nós duas - síndromes do espelho uma da
outra - que finalmente passamos a nos gostar e, por consequência, a admirar o
reflexo que no fundo debochava da ironia que residia em toda aquela rivalidade.
Beijocas!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fala aí, cunhã!