Um novo degrau na escala "evolutiva"! |
Aff! Ninguém merece! Depois de um feriado na mais profunda e intensa morgação, estou em plena sexta-feira no batente. Sem querer dar uma de fresca (mas já dando), pergunto: do que adianta trabalhar numa repartição pública quando esta se recusa a dar aquela “imprensadinha” básica? Tudo bem, nada de pânico. Deus ajuda quem cedo madruga, é o que sempre digo!
Chiliques à parte e ainda permanecendo nos meandros da esfera pública, resolvi escrever porque essa semana vi no trend toppics do Twitter a tag “Orgulho Hétero”, em referência ao projeto de lei do vereador Carlos Apolinário que visa instituir o Dia do Orgulho Heterossexual no município de São Paulo. A iniciativa, por sinal, motivou réplicas em outras Câmaras e Assembléias Legislativas do país, com parlamentares anunciando propostas semelhantes para suas regiões.
Acompanhando os comentários sobre a surpreendente tag, percebi manifestações a favor, contrárias ou simplesmente reações do tipo “como assim?”, que foi mais ou menos como me senti quando soube da empreitada do político. Pode ser que eu esteja errada (duras palavras de serem pronunciadas pela minha boca), mas diante de tantas pautas e necessidades importantes, o cara se dar ao trabalho de entrar com uma propositura dessa natureza às vésperas da realização da Parada Gay paulista, me parece, no mínimo, falta do que fazer ou mera provocação.
Para não agir guiada por inclinações particulares, decidi pesquisar um pouco mais sobre o assunto para ver se não estava sendo radicalmente incompreensiva. Afinal, se o sujeito quer defender a posição de “macho alfa dominante”, deixa o cara ser feliz. Um projeto assim, pensei, no final das contas pode nem feder nem cheirar.
Acontece que as notícias envolvendo o fato comprovaram minha tese inicial de birra infundada e inútil. Porque o nobre vereador, em retaliação pelo fato da maioria dos edis optar pelo adiamento da votação do projeto, simplesmente resolveu barrar a pauta de quase 30 outros projetos (certamente, bem mais importantes do que esse). A justificativa dos parlamentares que decidiram adiar a votação do Dia do Orgulho Hétero foi plausível: não havia porque colocar em regime de urgência um projeto envolvendo uma data a ser comemorada apenas em dezembro, justamente na semana que antecede a Parada Gay do município. O cheiro de provocação no ar ficou evidente para todo mundo, até para os mais desatentos.
Curiosa ainda são as manifestações de apoio à ação. Gente defendendo o “propósito de Deus” e declarando-se orgulhoso por ser “100% Hétero” pipocaram no microblog. O que eu não sabia era que o Todo Poderoso andava contratando assessor de imprensa ou advogado para defender “Sua Causa”. Muito menos que havia um teste para medir o índice de heterossexualidade nos seres humanos. Antenada como sou, claro que fiquei louca para saber mais sobre a existência dessa fenomenal máquina. Hoje, por exemplo, acho que o detector acusaria pelo menos uns 5% de homossexualidade, porque acordei mais fresca do que de costume e estou usando uma penca de acessórios cor de rosa. Essa tecnologia linda, sempre nos surpreendendo!
O episódio me fez recordar ainda um romance, cujo nome não recordo, em que o enredo se passava no início da colonização portuguesa no Brasil. Numa certa altura, um padre que compunha o quadro de missionários jesuítas incumbidos de catequizar os “indígenas selvagens”, incutindo-lhes a fé católica genuinamente comprometida com o “propósito de Deus”, simplesmente pirou! O clérigo, jovem e idealista, era realmente um sacerdote comprometido com sua crença, mas dotado de uma lucidez que o permitia enxergar além das aparências. Ingenuamente crítico, enchia seus superiores de questionamentos pontuais sobre os “meios” que estavam sendo usados para o cumprimento de tal propósito. O que incluía, é claro, empurrar os preceitos da Igreja goela abaixo e condenar à Inquisição os encapetados que se recusassem a aceitá-la. Afinal, eram os advogados, os representantes da vontade de Deus na Terra. E o que não lhes faltavam eram “subsídios fabricados sagrados” para justificar veementemente tal prerrogativa.
Como o padreco era oriundo de família abastada, os bispos e afins foram fazendo ouvido de mercador e tolerando a contragosto seus questionamentos, que mais pareciam advindos de uma criança curiosa do que necessariamente de um anarquista esclarecido e, consequentemente, perigoso. Mas depois de se enrabichar por uma bela “bruxinha”, praticamente condenada à morte, o cristão “enlouqueceu” e teceu um emocionante e eloquente discurso em público sobre essa questão do propósito divino, resultante da pressão dos inúmeros questionamentos que nunca lhes foram esclarecidos (até porque não havia uma explicação que fosse capaz de convencê-lo sem comprometer a “moral” da Igreja).
Não posso transcrever trechos do desabafo porque minha memória ainda é de um 486 (é o novo!). Mas lembro bem que, em síntese, ele questionava escancaradamente como Deus, Onipotente, Onisciente, Criador de tudo e de todos, acima do céu e da Terra, poderia preocupar-se tão profundamente com o fato de alguém não crer em sua figura a ponto de autorizar a perseguição e até a morte desses hereges. Ele não compreendia como um Ser tão bondoso, misericordioso, justo e perfeito poderia agir de forma tão humanamente pequena para desejar e buscar a vingança eliminando suas próprias criações por apresentarem falhas, tal qual um dono de uma fábrica que extermina robôs defeituosos durante uma inspeção de Controle de Qualidade. Bom, o resultado da estória vocês podem imaginar: churrasco de carne benta! O padre foi pra fogueira com a sua heregezinha!
Pois é. Graças a Deus a Inquisição faz parte do passado (vergonhoso, diga-se de passagem). Mas ainda tem muita gente que, se pudesse, condenaria à morte quem vivesse em discordância do “propósito divino” que tão pretensiosamente acham-se no direito de defender. Aliás, condenariam não, condenam! Porque muitos crimes bárbaros, incluindo os de natureza homofóbica, encontram em certas mentes doentias uma justificativa de conotação religiosa. E justamente devido a essa realidade desigual de preconceito, discriminação e intolerância, que aqueles segmentos reprimidos travaram lutas históricas para garantir a instituição de seus direitos. Foi assim com mulheres, com os negros, com os homossexuais... Ou seja, não se tratava de uma batalha meramente simbólica, mas surgida de uma necessidade REALISTA de opressão. Não PRECISAVA ser assim, mas TEVE de ser assim, porque moralmente falando tais direitos deveriam ter sido conferidos naturalmente a todos os homens, sem distinção, desde o início das civilizações.
Em relação à instituição de datas comemorativas, o princípio é parecido. Do ponto de vista pragmático, podem parecer inúteis e desnecessárias: dia disso, dia daquilo. Mas quando inseridas em um contexto e associadas às suas origens, adquirem uma configuração, no mínimo, relevante. O Dia Internacional da Mulher, por exemplo, tecnicamente falando pode não dizer muita coisa. Mas todo estudante de 5ª série sabe o porquê de a data ter sido criada: em alusão ao massacre de 130 operárias em Nova Iorque que protestavam por melhorias nas condições sub-humanas de trabalho. Embora o preconceito ainda persista, não se pode negar que lembrar que algo assim aconteceu de verdade, hoje nos deixa extremamente chocados. Então, pode-se concluir que apesar dos pesares, a coisa evoluiu. E só foi assim por causa da resistência dos grupos reprimidos e a custa da morte e da mutilação de muitos deles.
É mais ou menos assim que eu vejo a questão de datas como o Dia de Combate a Homofobia, Dia do Orgulho Gay ou eventos como a Parada. Elas não DEVERIAM ser necessárias, mas existem por conta de um debate constante ao qual a sociedade precisa ser submetida até compreender e enxergar o quão estúpida é a discriminação. Como disse várias vezes, pra mim não faz o menor sentido humilhar, maltratar e MATAR uma pessoa só porque ela gosta de alguém do mesmo sexo. Que diferença isso faz na minha vida, pelo amor de Deus? Mas infelizmente, ainda tem muita gente que acha que essa “raça” precisa ser coibida e até exterminada do convívio social, em respeito aos valores e propósitos divinos que os colocam na posição de defensores da moral e dos bons costumes.
Em resumo, o que espero é que essa atitude não represente o início de um conflito público envolvendo a defesa de valores morais. Conflitos estes que certamente contribuirão muito mais para a segregação do que para a harmonia social. Porque afinal de contas quem luta pelos seus direitos certamente não espera amor, admiração ou simpatia de quem discorda. Espera simplesmente RESPEITO e igualdade de direitos que lamentavelmente ainda lhe são negados. Nada mais justo, é claro. Mas desde que faça sentido, né, bem? Afinal, ninguém briga pelo que já tem!